Projeto de lei que facilita a liberação de agrotóxicos é aprovado na Câmara dos Deputados

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Fonte: Deutsche Welle

Para entender o aparecimento de doenças até então desconhecidas na pequena comunidade de Tomé, região da Chapada do Apodi, Ceará, os moradores pediram ajuda da ciência. A desconfiança aumentou depois do nascimento de bebês com malformação e de sinais da puberdade em crianças de um ano de idade.

Com 2.500 habitantes, a maioria das famílias em Tomé trabalha em fazendas que se instalaram na região a partir dos anos 2000, estimuladas por projetos de irrigação. Com os extensos cultivos de melão, melancia e banana, que também seguem para a Europa, chegaram os agrotóxicos – pulverizados por aviões e tratores.

“Os achados são alarmantes”, afirma Ada Pontes Aguiar, médica e pesquisadora da Universidade Federal do Ceará (UFC). “No nosso estudo, constatamos que os casos de malformações congênitas e puberdade precoce têm relação com a intensa exposição dessas crianças e suas famílias aos agrotóxicos na região”.

Há pouco mais de um mês, Aguiar retornou à comunidade para apresentar as conclusões do trabalho científico. Para Luci, professora e mãe de uma das crianças estudadas, não foi uma surpresa.

“Muitas coisas ruins aconteceram na minha comunidade desde a intensificação do uso de agrotóxicos”, respondeu à DW Brasil. O marido de Luci, que trabalhou com pulverização em plantação de melão por mais de sete anos, abandonou a atividade.

Reginaldo Ferreira de Araújo também recorreu aos cientistas depois do aumento considerável de casos de câncer entre os trabalhadores rurais. Atendendo ao chamado, o grupo de pesquisa liderado por Raquel Rigotto, da UFC, constatou que o índice era 38% maior que em outras cidades vizinhas.

“Com a ajuda da ciência, dos pesquisadores, o que o Zé Maria apontava empiricamente pela vivência dele ficou comprovado cientificamente”, explica Araújo.

José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé, mobilizou comunidades contra pulverização aérea de pesticidas. Dizia que crianças adoeceriam, pessoas morreriam de câncer com o uso abusivo do produto. Foi assassinado em 2010, com mais de 20 tiros – 17 pelas costas.

Acusados de executar o crime, três envolvidos no caso foram mortos nos anos seguintes. Os apontados como mandantes pelo Ministério Público viraram réus e aguardam o julgamento há oito anos, em liberdade.

Em Brasília, o projeto de lei 6.299/2002, que facilita a liberação de agrotóxicos, foi aprovado em uma comissão especial da Câmara dos Deputados e aguarda votação em plenário. A proposta em discussão reduz o poder de decisão de quem analisa os riscos ambientais e à saúde humana – Ibama e Anvisa – e dá ao Ministério da Agricultura a palavra final sobre a aprovação de novos defensivos agrícolas.

A medida preocupa a diretora de Qualidade Ambiental do Ibama, Jacimara Guerra Machado. “Será que o Ministério da Agricultura vai seguir uma decisão do Ministério do Meio Ambiente e da Anvisa quando o produto não for recomendado?”, questiona.

O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, é um dos maiores produtores de soja do mundo, e a soja é cultura que mais consome agroquímicos no Brasil. Foi ele o autor do PL 6.299, em 2002, quando era senador.

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O setor que produz pesticidas e herbicidas está satisfeito com o andamento da matéria no Congresso. “Todas as mudanças pretendidas pela indústria estão no projeto de lei”, afirma Sílvia Fagnani, diretora executiva do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), que reúne 35 indústrias e representa 98% do mercado nacional.

Ela considera que a lei “moderniza a análise, com adoção de avaliação de risco”. Segundo esse conceito, o perigo não está necessariamente no uso do produto, mas na dosagem. A lei atual é mais restritiva e veta produtos que ofereçam perigo às pessoas e ao meio ambiente, independentemente da dosagem.

Para Fagnani, as mudanças permitem que defensivos agrícolas mais modernos sejam registrados com rapidez. “Novos produtos levam até 10 anos para serem registrados”, critica.

Fila de prioridades

Machado reconhece a demora, mas nega que a lentidão seja por falta de eficiência no Ibama. “A falta de recursos humanos é um problema. Mas quando o pedido chega na mão do analista, o prazo de 120 dias é atendido”, diz ela, referindo-se à legislação.

A diretora de Qualidade Ambiental do Ibama alega ainda que, na fila de pedidos que se acumulam, a prioridade é estabelecida pelo Ministério da Agricultura: quando há necessidade de que um determinado produto seja liberado com urgência, ele passa na frente dos demais na análise.

“Quando as empresas alegam que estamos atrapalhando a tecnologia, a modernização, isso não é verdade. Porque os produtos na lista de prioridades são analisados dentro de 3 a 4 meses”, rebate Machado.

Atualmente, 1.338 processos para novos registros de agrotóxicos aguardam a avaliação do Ibama. Desses, 15 são de moléculas novas, os demais são equivalentes a produtos já liberados para uso.

Segundo o Ibama, a lista do Ministério da Agricultura tem dado prioridade a produtos que já têm vários tipos liberados no mercado. “Como o glifosato, que está sempre na lista. Hoje a gente já tem mais de 200 marcas registradas. Eles alegam que colocam mais produtos na lista para que haja mais competitividade no preço. Mas será que precisam de 200?”, questiona Machado.

Entre os produtos liberados pelo órgão nos últimos 20 anos, apenas 50% foram de fato colocados à venda no mercado brasileiro.

Poder e isenção fiscal

Seja como for, os especialistas apostam que o PL 6.299 será aprovado sem problemas. “A discussão é mediada por uma classe que ocupa muitas cadeiras na Câmara dos Deputados, num país que tem uma das maiores concentrações de terra do mundo”, diz Larissa Bombardi, pesquisadora da Universidade de São Paulo e autora de um atlas sobre uso de agrotóxico no país. “Eles estão viabilizando interesses dos proprietários de terra e da indústria agroquímica”, adiciona Bombardi.

Em 2017, foram comercializados 8,8 bilhões de dólares em defensivos agrícolas no Brasil, segundo dados do setor. Um dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) estima que, de 2000 a 2012, o mercado de agrotóxicos cresceu 288,41% em faturamento e 162,32% na quantidade de toneladas vendidas, com apoio de incentivos estatais.

Segundo estimativas levantadas pelo defensor público Marcelo Novaes, que atua no estado de São Paulo, o setor do agronegócio contribui com apenas 0,1% dos tributos recolhidos no estado. Por outro lado, a isenção fiscal em 2015 foi de 1,2 bilhão de reais apenas para agroquímicos.
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“É um mercado cheio de privilégios”, critica Novaes. “A farra da tributação do agrotóxico não está isolada, está num contexto político. Se você quiser analisar quem manda no país, tem que ver a legislação tributária “, avalia.

A influência da China

A isenção garantida pelo governo há algumas décadas é destinada a insumos usados na produção de alimentos: defensivos agrícolas, ração, maquinário e medicamentos para animais, entre outros.

Os principais beneficiados, porém, acabam sendo os produtores de commodities. Dentre os cultivos que mais usam agrotóxicos, soja, cana e milho estão no topo da lista no total de vendas em 2017.

Na avaliação de Victor Pelaez, pesquisador da Universidade Federal do Paraná, a nova lei vai favorecer também a China, líder mundial do setor de agrotóxicos, com 25% do mercado. “A importação é muito grande da China, que tem grande capacidade de síntese de molécula de patente vencida”, pontua Pelaez.

O país também é origem dos químicos clandestinos que chegam ao Brasil – o Sindiveg estima que 20% do mercado nacional seja ocupado por agrotóxicos ilegais.

“Também há a possibilidade de as empresas chinesas venderem para o Brasil coisas que, na Europa, eles não vendem”, prevê Bombardi. Com a flexibilização da legislação brasileira, comenta a pesquisadora, o controle de qualidade será determinado na China.

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