Por Ricardo Calcini e Maria Cibele de Oliveira Ramos Valença
No dia 01.9.2020, foi publicada pelo Ministério da Saúde a Portaria n.º 2.309, de 28 de agosto de 2020, que atualizou a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT), destinada a orientar os profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) acerca da caracterização das relações entre as doenças e as ocupações profissionais.
A COVID-19, causada pelo coronavírus, tinha sido listada inicialmente como doença ocupacional, relacionada ao trabalho. Entretanto, a referida norma foi tornada sem efeito no dia seguinte, por meio da Portaria n.º 2.345, de 2 de setembro de 2020.
E essa mudança de entendimento do Governo Federal decorreu da grande divergência de interpretação de que a contaminação pelo coronavírus pudesse ser entendida como acidente do trabalho reconhecido como tal pelo INSS, quando o afastamento ocorresse por período superior a 15 dias, com direito a todos os reflexos trabalhistas e previdenciários daí decorrentes.
Aliás, como exemplo dessa confusão interpretativa, alguns Fiscais do Trabalho já têm exigido que as empresas emitam a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) para qualquer contaminação de empregados pela COVID-19.
Assim, a suspensão dos efeitos da portaria ministerial é oportuna, pois a discussão sobre o enquadramento da COVID-19 como doença ocupacional se arrasta desde a Medida Provisória n.º 927, de 22.3.2020, que determinou que os casos de contaminação pelo coronavírus não seriam considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal. Importante lembrar que no 29.4.2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela suspensão da eficácia do referido dispositivo legal, trazendo interpretações de que a contaminação pelo vírus no ambiente laboral não pode ser presumida.
Registre-se que a doença ocupacional é um gênero do qual são espécies a doença profissional e a doença do trabalho, previstas que estão na legislação previdenciária (art. 20, I e II, da Lei n.º 8213/91), cujo enquadramento decorre da existência de nexo causal presumido ou não.
O nexo causal presumido apenas poderá ser reconhecido quando relacionado ao NTEP – Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário, nos termos do art. 337, §3º, do Decreto n.º 3048/99, conforme relação disposta taxativamente na Lista C. do Anexo II, do mesmo texto legal.
Também não deve ser esquecida a previsão inserta no art. 20, §1º, alínea “d”, da Lei n.º 8213/91, que dispõe que não são consideradas como doença do trabalho as doenças endêmicas adquiridas pelos segurados. Como atualmente tratamos de uma pandemia, com extensão e gravidade muito superiores à endemia, o artigo referido também tem muita pertinência para a solução da atual controvérsia.
A contaminação e a consequente possível situação de incapacidade para o trabalho do empregado deverá ser analisada pelo INSS, da mesma forma que as demais situações que suportam o pagamento de benefício previdenciário.
Ressalte-se que a contaminação de qualquer pessoa poderá ocorrer em casa, no deslocamento residência x trabalho e vice-versa, nos estabelecimentos comerciais relacionados ou não às atividades essenciais ou de lazer, e também no ambiente trabalho.
Caberá ao empregador, em eventual discussão administrativa ou judicial futura, demonstrar os cuidados que adotou para preservar a saúde de seus trabalhadores, como identificação de riscos, histórico ocupacional, trabalho em home office, escalas de trabalho, rodízio de profissionais, orientação e fiscalização sobre adoção de medidas relacionadas à saúde e segurança, além da entrega de equipamentos de proteção individual.
A preocupação com essa definição vai muito além da emissão da CAT e da garantia de estabilidade de 12 meses no emprego após a alta médica previdenciária prevista no art. 118, da Lei n.º 8213/91. É muito importante que a sociedade saiba interpretar corretamente a decisão do STF, assim como os ditames da Portaria do Ministério da Saúde que foi tornada sem efeito por ora, a fim de entender a extensão e o potencial grau destrutivo dessa interpretação precipitada pela caracterização “automática” do nexo causal.
Infelizmente inúmeros contaminados pelo coronavírus vêm a óbito, impactando de forma mais assertiva no cálculo do FAP (e nos encargos incidentes em folha de pagamento), acerto de verbas rescisórias e de benefícios legais e convencionais decorrentes, ressarcimento de despesas médicas e hospitalares, danos morais e até pensão mensal vitalícia.
Se o empregador tiver que assumir também a responsabilidade pelo contágio dos empregados neste momento de pandemia e calamidade públicas, é bastante provável que prefira dispensar os empregados. Não nos parece, porém, que essa seja a melhor decisão a ser tomada.
Assim, independentemente da vigência da portaria ministerial em questão, apenas se caracterizado o nexo causal entre a doença e o exercício do trabalho (ou as condições em que o mesmo é exercido), a empresa deverá emitir o CAT e garantir os direitos inerentes aos seus funcionários.
Por fim, é imprescindível que as empresas documentem todas as iniciativas preventivas e orientativas adotadas em relação à saúde de seus empregados, a fim de poder demonstrar, em eventual discussão futura, que cumpriram com todas as obrigações e cuidados cabíveis a fim de preservar a saúde de seus colaboradores.
Ricardo Calcini é professor de Direito do Trabalho da Pós-Graduação da FMU e autor do Livro Digital “Coronavírus e os Impactos Trabalhistas”; Maria Cibele de Oliveira Ramos Valença é advogada, mestre e doutora em Direito Previdenciário pela PUC/SP e professora em cursos de pós graduação.