Por Tatiana Pimenta, CEO da Vittude*
Durante muitos anos, o trabalho foi visto como um fardo. A herança da Revolução Industrial carregou por séculos a imagem de jornadas longas, produtividade exaustiva e sacrifício pessoal em nome do coletivo. Mas essa é apenas uma parte da história. Porque o trabalho, ao mesmo tempo em que exige, também organiza. Ao mesmo tempo em que consome, também constrói, e tem o poder de curar, estruturar e dar sentido à vida.
Quando bem conduzido, o trabalho é uma âncora. Ele organiza a semana, dá propósito aos dias, socializa, conecta pessoas, desenvolve talentos e eleva a autoestima. É no trabalho que muitos constroem sua identidade, criam laços duradouros e encontram realização, alguns encontram até a sua cara metade. Em um mundo que parece cada vez mais caótico, a rotina profissional pode ser, paradoxalmente, o lugar mais seguro e mais importante para a saúde mental. Mas o trabalho também pode adoecer. E é justamente por isso que precisamos falar sobre ele de forma honesta, ampla e livre de estigmas.
O lugar do trabalho na construção do propósito
Para jovens que ainda buscam seu lugar no mundo, e para idosos que enfrentam a perda da rotina e da autonomia, a ausência de trabalho pode significar a perda do sentido. Segundo o Ministério da Saúde, o suicídio já é a terceira causa de morte entre jovens de 10 a 24 anos no Brasil. A OMS aponta que 27% das mortes por suicídio no mundo ocorrem entre pessoas com mais de 60 anos. Em comum, está o rompimento com o propósito, muitas vezes, ligado à interrupção da atividade profissional.
O trabalho é mais do que tarefa: é pertencimento. É nele que criamos vínculos, trocamos ideias e participamos de algo maior. Ele pode ser fonte de orgulho e alicerce para os sonhos. A vida adulta, na prática, é moldada por ele: horários, metas, desafios, relações, reconhecimentos e marcos de crescimento.
E sim, ele também pode ser fonte de prazer. Como alguém que ama trabalhar, posso dizer que minhas melhores ideias nasceram no exercício das minhas funções. E que muitos dos meus melhores amigos vieram das empresas pelas quais passei. Trabalho é, também, um espaço de afeto.
O risco invisível dos ambientes doentes
Mas o trabalho, como diz o psiquiatra francês Christophe Dejours, “nunca é neutro”. Ele pode ser saudável ou adoecedor, e nutrir ou desestabilizar. O que define isso não é o cargo, o setor ou a complexidade das tarefas, mas as condições em que elas são realizadas.
Ambientes com baixa segurança psicológica, onde reina o medo de errar ou de ser julgado, são palco de sofrimento silencioso. O medo paralisa, reprime, silencia.
E o silêncio, prolongado, vira sintoma: dores de cabeça recorrentes, tensão muscular, insônia, queimação no estômago, problemas de pele, queda de cabelo e por aí vai. Pequenos alarmes físicos que sinalizam o que a voz não ousa dizer.
Não estamos falando apenas de clima organizacional. Estamos falando de ergonomia cognitiva, de design organizacional, de equilíbrio entre esforço e reconhecimento. Quando há muita demanda e pouco controle, ou muito esforço e nenhum retorno, o corpo entra em alerta crônico. A mente, também.
O resultado? Pessoas presentes, mas esgotadas. Segundo o Censo de Saúde Mental da Vittude, as empresas brasileiras apresentam 31% de presenteísmo. Esta é a perda de performance e produtividade dos trabalhadores brasileiros. Não é um palpite, é uma estatística nacional baseada em mais de 100 mil respondentes, e um dado que grita por atenção.
Burnout também é acidente de trabalho
Em julho, celebramos o Dia Nacional da Prevenção de Acidentes de Trabalho. Mas seguimos falando apenas de capacetes, EPIs e escorregões no chão molhado. E os acidentes que não deixam hematomas? E os danos que não se veem?
A ansiedade não tem gesso, e a depressão não precisa de curativo. Mas ambos afastam, derrubam e invalidam. Ainda assim, quem sofre é visto como fraco. Há um estigma, um preconceito silencioso, e, por isso, milhares seguem adoecendo em silêncio.
A partir de 2027, com a entrada em vigor do CID-11 no Brasil, a síndrome de burnout passa a ser oficialmente reconhecida como fenômeno ocupacional. A partir disso, o sofrimento emocional no trabalho não poderá mais ser tratado como problema “pessoal”. As empresas serão chamadas a responder e a prevenir.
Isso é, na prática, o que a nova redação da NR-1 propõe. Atualizada em 2024, ela traz um olhar prevencionista para os riscos psicossociais, e reforça a importância de diagnósticos reais. A NR-1 não é sobre um documento na gaveta. É sobre mapeamento, escuta dos trabalhadores e plano de ação. Não é sobre fiscalizar, é sobre proteger.
Empresas que protegem são empresas que duram
Cuidar da saúde mental não é só estratégia, é o novo básico. As organizações que desejam longevidade precisarão ser capazes de oferecer ambientes emocionalmente sustentáveis. Isso significa capacitar lideranças, equilibrar metas com autonomia, respeitar limites, fomentar relações saudáveis, valorizar o descanso.
Significa tratar o trabalho como espaço de vida e não de sobrevivência, deixar para trás discursos genéricos e começar a construir estruturas de cuidado reais, com políticas claras, canais de escuta, cultura de apoio e acompanhamento de indicadores.
O trabalho, quando bem estruturado, salva vidas. Ele protege a identidade, a dignidade, e a esperança. Ele não é o vilão, mas pode e deve ser protagonista da saúde. Não existe EPI contra a humilhação, mas existe liderança preparada, cultura segura e empresa que entende que prevenir não é custo, e sim compromisso. Porque o trabalho adoece, mas, acima de tudo, ainda pode e deve proteger.

Foto: arquivo da autora
Fundadora e CEO da Vittude, referência no desenvolvimento e gestão estratégica de programas de saúde mental para empresas. Engenheira civil de formação, com MBA Executivo pelo Insper e especialização em Empreendedorismo Social pelo Insead, escola francesa de negócios. Empreendedora, palestrante, TEDx Speaker e produtora de conteúdo sobre saúde mental e bem-estar, foi reconhecida em 2023 como LinkedIn Top Voice, e em 2024 como uma das 500 pessoas mais influentes da América Latina pela Bloomberg Línea.